quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012 | By: Cinthya Bretas

Ainda dormindo com o inimigo?


A algum tempo atrás vendo as fotos da captura de Muamar Kadaffi um estranho mal estar me desconcerta em ver ali na face do ditador o desespero diante da morte.
Frágil e ferido ele tenta se defender e  encolhe o corpo como um cão acuado em desespero. Penso: “Será que neste momento se arrependeu?” E por um segundo, somente consigo ver ali um ser humano em sofrimento e medo. Humilhado, publicamente execrado, executado por um tribunal extrajudicial. A angústia diante da implacabilidade morte e diante da incerteza do que esta seria.
Sim,aqueles que imputam dor e sofrimento, aqueles que matam, torturam, vilipendiam em algum momento também serão passiveis de estar na posição de vitimas. E neste momento eles temem a morte e imploram. Também eles são humanos.
 E estranhamente embora sabendo de todo sofrimento que Kadaffi causou a muitos, me vejo consternada e com pena. Parece sem sentido ter  piedade  de um sádico que perpetrou vários crimes contra a humanidade. Mas é verdade, lastimavelmente, senti pena. Do pobre diabo que foi afastado de um possível afeto familiar, acabando por se tornar um governante sanguinário, que dirigiu com mão de aço e extrapolou em todos os sentidos sua insanidade ideológica. Pena do que talvez tenha sido o seu breve e insuportável inferno na transição para a morte. O inferno da culpa e do arrependimento. Se é que existiu.
Mas logo em seguida suspendi o mal estar e tentei entender o que representa este meu sentimento e para isto, o trouxe para a história da vida privada, onde as reverberações da violência e da opressão ocorrem silenciosamente no cotidiano de cada um. Afinal, todos seremos passíveis de, algum dia, nos deparamos com algozes em nossas vidas.
Alguns chegarão a experimentar algozes poderosos em sua destrutividade. Com sorte, carrascos diretos, que mostrarão de cara e a que vem. Outros, no entanto não terão a mesma sorte. A violência tem muitas faces, miríades de representações muitas delas mascaradas até mesmo em Amor. Amor? Estranho amor.
Esta violência, que acontece no cotidiano das famílias, ali onde ela jamais deveria ter entrado, é uma realidade comprovada. E nos deparamos com sua presença sempre de maneira velada. Ninguém que a sofre quer ou pode falar dela. Existe um acordo implícito ou mesmo imposto através de ameaças ou chantagens.  Esta violência de muitas faces em algumas culturas é até vista com benevolência: necessária e justificável. Afeta vários membros de uma família em hierarquias diferentes e não privilegia idade, sexo, condição socioeconômica ou nível cultural. Imparcial, pode estar ao lado, bem pertinho de nós e pode, inclusive, estar sendo agora estrategicamente ignorada seja em nossa própria vida, seja na vida do vizinho. Embora notória, gritante, atravessando as paredes, embora os pedidos de ajuda reincidentes. Em briga de marido e mulher não se mete a colher. Não é assim que alguns “amigos” se posicionam?

Estatisticamente uma em cada três mulheres já esteve diante do inimigo que, ou a coagiu ao sexo, a agrediu fisicamente chegando ao espancamento ou sofreu algum tipo de abuso moral ou físico em toda sua trajetória de vida. O agressor bem se sabe, é geralmente, um membro de sua própria família. E quando parte do parceiro sexual, seja namorado, marido ou amante, será sempre acompanhada de  agressão psicológica e, de um quarto à metade das vezes, também de sexo forçado . Esta sua forma mais grave, a violência leva à morte da mulher. Assim estatisticamente 40 a 70% dos homicídios femininos são evolução da violência doméstica cotidiana.
Mas é importante entender que não se trata da ocorrência um ato único de agressão física. Esta violência é o desdobramento de um padrão crescente e recorrente, de controle e dominação.  Iniciam-se com pequenos abusos que vão minando as já anteriormente frágeis forças de defesa da vitima até fazê-la refém definitiva. Digo, “ Já anteriormente frágeis” porque o agressor sabe muito bem com quem se mete.Escolhe suas vitimas com preciosidade sabendo  qual se submeterá até o fim. È capaz de perceber quais trazem em sua história afetiva as marcas que o habilitam a entrar como um ladrão e se apossar de suas almas.
O padrão se inicia de maneira gradativa. Primeiro a falta de respeito e a agressão verbal vão sendo introduzidas paulatinamente na vida do casal. Posteriormente, através de menosprezo, intimidações e humilhação constantes e se estabelece o Abuso psicológico.  Em seguida, ou concomitantemente se inicia o martírio físico com empurrões, depois tapas, “sacudidas”, puxões de cabelo, que evoluem para chutes, surras, tentativas de estrangulamento, queimaduras, perfurações... E a ofensiva se desenrolam em crescente perversão sempre acompanhados de ameaças que tanto podem ser dirigidas diretamente a vitima principal como também se estendem aos membros mais próximos e também frágeis da família como filhos ou os mais idosos.
Alguns com sofisticada crueldade vão, pouco a pouco, destruindo as defesas psicológicas que restam a vitima através de quebras de objetos favoritos, móveis, e as próprias economias da pessoa agredida. Dilapidando seus recursos materiais de maneira a que a vitima fique completamente a sua mercê, sem ter para onde fugir. Para isto o agressor pode, por exemplo, recorrer a uma solicitação de que se façam empréstimos que não serão pagos no nome da vítima, ou pode ir se apossando de seus bens para “aplicação” ou investimentos dos quais jamais se verá resultado.
A extensão e o golpe de misericórdia na autonomia da pobre, se fará através do controle total e irrestrito e pela criação de um circulo de isolamento da mulher afastando-a dos amigos e da família e através da constante vigília sobre cada passo que dá ou pelo afastamento de qualquer atividade que possa abrir seus horizontes, ou apontar saídas, como estudar, ir a festas ou viajar, por exemplo. Alguns mais astutos operarão através da criação de uma rede de isolamento negativa. Para se garantir nas suas futuras atuações abusivas o opressor se apropria de todas as relações da vitima, tornando-se amigo ou genro exemplar, impecável e, paulatinamente substituindo os afetos antes reservados a vitima unicamente para si. Poderá também criar uma pequena rede de intrigas em torno da vitima preparando terreno para possíveis rebeldias da mesma. Queixas sobre seu comportamento são ventiladas, aos poucos, habilmente de maneira tal que, caso a vitima resolva pedir ajuda será repreendida pelos amigos por seu péssimo comportamento. Ficando na defesa do algoz a retaliação violenta é vista como plenamente justificável. Este comportamento coercitivo por parte do agressor terá sempre para com a vítima a justificativa ou do ciúme ou do desejo de protegê-la. A Coerção e violência sexual logicamente serão parte integrante de todo este repertório aviltante.
Ouvindo relatos de pessoas que foram submetidas a duras temporadas deste cárcere afetivo qualquer um se sente inconformado e atônito  com tamanha estupidez sem sentido. E sempre vem o questionamento de como seria possível que isto se perpetuasse assim, indefinidamente, sem que ocorra retaliação ou movimentos em direção a libertação. Esta é a questão central desta trama de horror.
Se o agressor perpetua é porque a vitima se mantém no estado de vitimização. Em primeiro lugar, deve-se considerar que estranhamente ela será a primeira a proteger seu agressor. A primeira providência neste sentido será manter em segredo sua condição. Maquiagem, óculos escuros e roupas de mangas compridas esconderão as marcas da agressão.  Assim seu sofrimento costuma ser reservado (e perpetuado) e muitas vezes quando é descoberto terá um rol de desculpas por parte da vitima. Todas as justificativas possíveis se alternarão para explicar as razões do comportamento abusivo do companheiro. Quando por fim se torna impossível por alguma razão a manutenção da situação, uma arapuca já estará armada. Após um inesgotável rol de intimidações sofridas ela, agora, apesar de não suportar mais, não denuncia com medo de vê-las concretizadas. Algumas temerão diante da incerteza de sua sobrevivência financeira, sentem-se incapazes de retomar sua vida em liberdade. Outras vítimas do já mencionado cerco promovido pelo algoz, temerão a perda de suporte da família e dos amigos que em sua imaginação certamente atribuirão a ela a culpa de tudo pelo que está passando. O que em algumas situações nem é de todo fantasioso.
A esperança de que alguma mágica aconteça e ele se modifique sempre acompanha as fantasias da mulher que sofre violência. E algumas outras argumentarão sobre a felicidade dos filhos, sobre o quanto sofrerão ignorando o maior mal que já sofrem e o fato de que se, já não são, também podem se tornar vitimas de abuso e violência tanto na presente situação como no futuro, como resultado do trauma sofrido na convivência familiar.
Porque o fato é que aqui também se repete. Repete-se o que se sofreu ou o que se presenciou traumaticamente. O modelo de violência fica como um molde ao qual o sujeito tenta desesperadamente se adequar. Cada memória soterrada da infância de rejeição, maus tratos, negligencia ou abuso sexual buscará repetição pelo resto de sua vida. Seja como agressor seja como vítima.
         E se isto em parte explica a origem da fúria daquele que perpetra a agressão, no entanto não a justifica. Portanto criar coragem e buscar ajuda é fundamental. Mas de onde tirar esta coragem se conjecturarmos que a vitima de violência doméstica é igualmente oriunda de uma família onde se sofreu este tipo de agressão? Violência, maus tratos e abuso sexual costumam ser uma herança maldita  que se repete de pai para filho e de mãe para filha, ad eternum ,se nenhum movimento ou evento inesperado fortuitamente interromper esta propagação.
Se hoje vários órgãos federais municipais e ONGs dão suporte às vitimas de violência doméstica, se hoje no Brasil existe uma lei como a Maria da Penha, ao mesmo tempo a trava do medo impede as suas vítimas confessar e buscar ajuda. A origem deste comportamento é plenamente justificada a partir de uma investigação sobre o histórico psico-afetivo de ambos, vítima e opressor. Porque ambos estão doentes.
Entenda-se que existem vários níveis de consciência nesta patologia. Níveis que, entrementes, não retiram nem minimizam  a culpabilidade .
É bastante comum que estes casais quando ainda dentro de uma capacidade de discernimento, menos brutalizados em seus históricos pessoais ainda tentam conseguir ajuda profissional. No entanto muitas vezes é justamente é aquele que inflige sofrimento ao seu par que busca ajuda em terapia de casal.  Muitos chegam “inocentes” e manipuladores, com o discurso justificador da desobediência. O outro não obedece, o outro o faz perder a razão. Seu desejo é que o terapeuta o ajude a perpetuar a carceragem.
Mas quase todos, como é contumaz nas terapias de casal, chegam depois da hora, depois que já rimaram e desrimaram amor e dor ao extremo do impossível. Quando não há mais perdão. Porque as marcas do corpo já podem ter sarado, por alguma trégua parcial. Mas as marcas da alma ficaram para sempre. Aquilo que existe entre os dois é um misto, da perversão de amor, que goza através do medo e do sofrimento que infligem, e do prazer doente em receber o sofrimento nas mãos como um presente. É tudo. E causa pena. Mas, não é amor. Amor ainda é uma lição a ser aprendida. Embora não tenham culpa da herança que carregam, são responsáveis por sua manutenção, geração a geração
Portanto a primeira e principal pessoa que poderá libertar definitivamente a vitima dos maus tratos será sempre ela mesma, e somente sua coragem na decisão de pôr fim definitivamente a esta cadeia que se perpetua talvez desde muitos tempos velados, anteriores a sua memória mais antiga. Buscar ajuda, no entanto é primordial, pois se trata de uma batalha muito árdua para ser levada em solidão.

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