sexta-feira, 30 de setembro de 2011 | By: Cinthya Bretas

Vivendo na Fronteira: Transtorno de Personalidade Borderline



Alguns de nós viveremos eternamente na fronteira. Nem no país da desrazão total e nem tampouco no país da “sanidade” absoluta. E será ali na fronteira, nem lá nem cá que estes se instalarão com sua dor. Impossibilitados de optar pelo mergulho no mar sem fim da psicose, alguns sujeitos farão a escolha de um estado onde pousarão desconfortavelmente numa corda-bamba de escolhas muitas vezes perigosas.
 Estes são os borderline. Uma escolha psíquica que já foi retratada em inúmeros exemplos na literatura e que mais recentemente tem na personagem principal do filme “Garota, interrompida” um dos seus mais famosos exemplos. Uma estranha escolha psíquica que acomete especialmente a população feminina e a principio lembra aqueles extremos emocionais comuns ocorrentes na adolescência, fervilhante de hormônios nascentes, que se dissipam naturalmente na maturidade, mas que para o paciente borderline jamais se extinguirão tão facilmente.
Nas primeiras investigações em torno dos pacientes que apresentavam estes sintomas foram, entre outras denominações, apelidados de “esquizofrênicos latentes”. Como se neles a esquizofrenia estivesse encapsulada. Seu comportamento sempre leva ao sofrimento pelo extremismo com que se expressa em todos os aspectos de sua vida. Os pacientes hoje denominados como borderline, eram vistos, portanto, como sujeitos que trafegavam entre a neurose e a psicose. E não estariam completamente na psicose porque seu raciocínio estaria ainda intacto, sem as confusões delirantes apresentadas nas psicoses.

Sendo assim um transtorno considerado inicialmente pela psiquiatria como pertencente ao grupo das psicoses, encontrava-se associado à esquizofrenia até que em 1979 num estudo de Spitzer, Endicott e Gibbon[1], teve seus vários aspectos reavaliados, passando a ser visto como pertencente a classe dos Transtornos de Personalidade Emocionalmente Instável e classificado como um distúrbio de personalidade “borderline”, ou seja fronteiriço. Somente em 1980 o termo borderline foi definitivamente aplicado a estes pacientes cuja característica mais marcante e de maior sofrimento é a maneira descompensada com que estabelecem seus laços afetivos.
Alguns aspectos do comportamento destes pacientes, assim como a legenda central entorno da qual se estabelecem suas reincidentes perturbações, são a impulsividade descontrolada, as alternâncias bruscas de humor e o massivo investimento afetivo em seus relacionamentos assim como sua maneira contraditória de externar estes afetos.

Os sentimentos crônicos de vazio e a intolerância em estar só costumam ser queixas reincidentes e se estabelecem e alternam freqüentemente com uma busca intermitente por novas relações interpessoais que costumam se desenvolver de forma muito dramática, extremada e conturbada gerando muita frustração e considerável grau de sofrimento pelo seu amplo espectro de ambigüidade na expressão de afetos e pela forte carga de conflitos que são ocasionados, uma vez que a vinculação massiva e a hostilidade são concomitantes.

Uma grande insegurança e enorme necessidade de se fazer amado permeiam as fantasias de abandono, que podem ou não ter raízes em vivências concretas e explicitas de abandono anterior. Estas fantasias obviamente serão muitas vezes o eixo de discórdia dentro das relações. Trata-se de um sujeito que, a despeito de todo afeto e atenção recebido, sempre consegue encontrar uma sinalização, pequena e irracional que seja, de que aquela manifestação de amor não é assim tão verdadeira, de que alguma coisa não foi completamente satisfeita em suas necessidades afetivas. E a verdade, é que jamais será.  Os conflitos em torno deste tema serão crivados de intensa agressividade.

Deste modo a raiva, ou grande irritação, dirigida a pessoas ou objetos costuma ser o tom norteador dos afetos e uma depressão de fundo aparece sempre acompanhada pelo sentimento de rejeição e de grande solidão. Este perfil de dependência afetiva promove nestes sujeitos a alta freqüência de sentimentos de desamparo, fraqueza, medo de abandono e uma forte necessidade de nutrição afetiva, para se sentirem protegidos e amados. Angústia e a sensação de aniquilação e insegurança são tônicas do cotidiano do sujeito sem, no entanto serem notados o estabelecimento de algum tipo de delírio estruturado

Mantendo desta maneira uma raiva ressentida e irracional e sobre a qual não conseguem ter controle, como afeto preponderante, expressam sua sexualidade também de maneira intempestiva e geralmente promíscua. A impetuosidade exacerbada contrasta com a concomitante dependência emocional e a intensa e ininterrupta necessidade de amparo vindo daqueles com os quais conseguem estabelecer laços mais duradouros e significativos. É o que às vezes se denomina na linguagem popular de “morde-assopra”. Ao mesmo tempo necessita emocionalmente de certas pessoas até mesmo para desenvolver muitas atividades cotidianas e por outro lado mantém uma atitude agressiva de eterno conflito com as mesmas.

O Sujeito de personalidade fronteiriça parece apresentar a principio uma vida afetiva como a de qualquer uma pessoa em maior equilíbrio psíquico, com a devida preservação de habilidades afetivas e a capacidade emocional sensível e integra. Conseguem manter uma vida social até mesmo razoável. No entanto qualquer frustração, mínima que seja diante de suas expectativas pode gerar a brusca dissolução de uma relação afetiva ou de um investimento qualquer percebido como importante. Portanto, suas trocas afetivas serão sempre marcadas pelos afetos intensos, intempestivos e instáveis. Se por um lado nas relações superficiais existe uma adequação social, qualquer aprofundamento numa relação mais intima desenvolve uma interação repleta de instabilidade e inadequação nas respostas emocionais. Aí se manifestarão os traços de dependência, instabilidade manipulação e agressividade sem fundamentos ou exagerada.

Seu comportamento agressivo volta-se sobre si mesmo num processo de autodestruição característico que poderá ter como objetivo o mais das vezes, atrair para si atenção numa exigência extremada de afeto. A intenção de promover a manipulação dos outros, de chamar a atenção inclui o envolvimento e abuso de álcool, drogas e tendência à delinqüência, que ocorrem como se estivesse interpretando um papel, criando um personagem “viciado” ou desajustado.

 Com o mesmo objetivo também ocorrem as autolesões, e este comportamento, pode mesmo chegar às tentativas de suicídio, mas ressaltando-se que com um pouco de investigação poderemos captar a nuance que denunciará a manipulação implícita.
Sua autodestrutividade inclui comportamentos de risco, voltados a atitudes radicais, que primam por atividades perigosas como dirigir de maneira inapropriada, alcoolizados ou drogados e outras buscas desenfreadas de situações arriscadas que geram adrenalina. Esta autodestrutividade abarca promiscuidade sexual, perversões na busca de afeto e na expressividade sexual, e freqüentemente a busca de objetos de afeto inadequados pelas implicações destrutivas do relacionamento. A identidade sexual costuma ter um status também fronteiriço.

No entanto a despeito da constante busca de atividade sexual de risco ocorre uma importante dificuldade em sentir prazer ou mesmo buscar prazer ou realização em algum aspecto de sua vida. Dificilmente investirão em situações realmente supridoras de prazer e satisfação pessoal.
Os investimentos se existem são situações que têm sempre um atributo de inalcançabilidade, mas, ainda que possam se aproximam de seus objetivos, estejam eles alcançados ou prestes a ser conseguidos, são rapidamente desinvestidos, perdem o interesse.

È notável a existência de um baixo desempenho escolar ou profissional para o nível de inteligência apresentado e a falta de metas ou de capacidade em cumpri-las, paralelos a uma insatisfação permanente com frustração reincidente são outra constante. O sujeito acredita que vale menos, sabe menos. Percebe-se como fútil, incapaz e sempre uma grande ansiedade e uma fixação ideativa colore estes sentimentos. São comuns episódios freqüentes de despersonalização, distúrbios de identidade e episódios de ideação paranóide.

A intenção de promover a manipulação dos outros, de chamar a atenção inclui o envolvimento e abuso de álcool, drogas e tendência à delinqüência, que ocorrem como se estivesse interpretando um papel, criando um personagem “viciado” ou desajustado.

A grande pergunta neste como em todos os tratamentos de desordens psico-afetivas será o que da origem a esta patologia tão sofrida. A maioria dos  estudos feitos em pacientes com transtorno de personalidade borderline, apontam às ocorrências na infância de privação da presença dos pais (principalmente a mãe), assim como problemas familiares intensos. Nos últimos anos passou-se a investigar a relação entre abuso sexual na infância e a personalidade borderline. Nesse caso os estudos encontraram taxas que variavam de 10 a 73% dos pacientes borderline com passada de abuso sexual por parte dos pais ou de quem tomava conta deles; sendo que desses 33% tiveram relações incestuosas.
Ainda nesse assunto, 16 a 71% dos borderline sofreram abuso sexual por pessoas não ligadas ao relacionamento direto.

Outras avaliações mais apoiadas na biologia apontam formas de pensar, e estressores sociais (modelo psicossocial). Segundo esta abordagem os indivíduos com BPD são biologicamente mais propensos a ter anormalidades no tamanho do hipocampo, no tamanho e no funcionamento da amígdala e no funcionamento dos lobos frontais, que são as áreas do cérebro que são entendidos como regular as emoções e integrar pensamentos com as emoções. Embora contradizendo este principio outras pesquisas afirmam que as pessoas com TPB parecem ter áreas do cérebro que são mais e menos ativos em comparação com indivíduos que não têm o transtorno.Portanto, padrões específicos de funcionamento cerebral, como são atualmente estudadas e entendidas, parecem preditores confiáveis ​​da TPB.
Embora esta abordagem faça um enquadre genético, ela pode tanto ser manifestar em indivíduos de uma mesma família como pode ocorrer em eventos isolados. Mesmo a ocorrência de algo biologicamente comprovável em termos de funcionamento cerebral o fato é que os mesmos estudos associam a forte propensão do individuo ter sofrido abuso na infância ou ter sido negligenciado pelos pais. Poderemos, portanto a partir disto supor uma provável interferência dos processos psico-afetivos em ressonância nos processos neurais e na bioquímica cerebral do paciente acarretando este transtorno.
O tratamento deste transtorno exige uso psicofármacos, mas sempre em associação com a psicoterapia. Esta é uma ferramenta comprovadamente eficiente neste tratamento. Estudos comprovaram que através de terapia psicanalítica alcança-se uma redução dos sintomas depressivos assim como o número de tentativas de suicídio e agressão e melhor funcionamento interpessoal e social.
Para os pacientes internados egressos de crises a evolução diminuiu os dias de internação e após a alta estes pacientes, em contraste com outros métodos terapêuticos, também garantiu menores índices de recidiva de episódios extremos após terapia emergencial no hospital.



[1] Spitzer; J. Endicott & M. Gibbon. “Crossing the border into borderline personality and borderline schizophrenia”. Arch. Gen. Psychiatry, 36, 1979.

5 comentários:

NOEMI disse...

Parabens! pela iniciativa de nos esclarecer de forma intelegível assuntos tão complexos.QUE SUA SEMANA SEJA TRANQUILA.

Unknown disse...

"esquizofrenia encapsulada"???
Não consigo ver assim.
Acho que o border passa longe da esquizofrenia. O bipolar sim, poderia ser visto dessa forma, na minha opinião.
Começando pelo princípio que esquizofrenia é uma doença e TPB é um distúrbio de conduta, um transtorno de personalidade, não uma doença.
A propósito, sou borderline.

Belo blog!!

Anônimo disse...

Wally, foi dito como esquizofrenia antigamente e não agora rs o tpb eh um transtorno psicológico e não é considerado doença.

Bjo Ju Hadaff

Cinthya Bretas disse...

Pois é Wally e Ju, toda esta questão é tão limítrofe e polêmica quanto a própria e mesmo quanto as ditas “doenças mentais” e até de doenças em geral.
Vários autores já dissertaram a respeito como em “O Normal e o Patológico” do Canguilhem, o Thomas S. Szasz em “A invenção da loucura” e “O mito da doença mental” e lógico, Foucault em“A historia da loucura” e “O Nascimento da clinica” ou mesmo, no livro “ “O eu dividido” do Laing todos livros muito recomendáveis antes de se estabelecer um critério absoluto a respeito.
Para a Medicina necessariamente transtornos bipolares- TBP, transtornos limítrofes-TPL (que são coisas diferentes, atentem) e outros são doenças. Duvida? Estão lá catalogadas nos DSM e nos CID.
O conceito de doença é amplo assim como o de saúde mas nos livros de Medicina é delimitado da seguinte maneira: Doença (do latim dolentia, padecimento) designa em medicina e outras ciências da saúde um distúrbio das funções de um órgão, da psiqué ou do organismo como um todo que está associado a sintomas específicos.
A partir do momento em que se pressupõe uma fuga da “normalidade” e, se propõe a necessidade de um “corretivo” ao transtorno, (e este corretivo é o psicofármaco) temos uma doença. E mais, uma doença reconhecidamente de ordem física, uma vez que é com um artificio físico que se pretende “curá-la”.
As nomenclaturas e definições dos sofrimentos psíquicos decorrem das escolas de pensamento e procuro sempre expor todos os olhares quando as descrevo. Poderíamos elucubrar, por exemplo, o seguinte raciocínio: Um transtorno mental é um desvio da normalidade. Um desvio da normalidade é uma doença? Se doença é ausência de saúde, e saúde é equilíbrio e bem estar, um evento físico ou mental que causa sofrimento seria uma doença . Ou mais, dentro do olhar da Medicina, uma doença crônica, como é definida a doença mental para a qual segundo a mesma, necessariamente não se tem volta.
Por outro lado, “distúrbio de conduta” seria reduzir o problema a uma questão moral. Perigoso.
O olhar Psi por outro lado reconhece e define como sofrimento psíquico, todas estas manifestações, evitando engessar estados mentais sobre os quais em verdade não sabemos ainda o suficiente para atribuir-lhes uma herança genética, reduzindo-os e restringindo-os a um desequilíbrio da bioquímica cerebral. Somos muito mais do que isto.
.

Anônimo disse...

Olá Cynthia,
parabéns pela descrição. Acho que foi a melhor que achei até agora. Sou paciente diagnosticado com tal quadro, pela incidência ser maior na população feminina, descobri, após o meu tratamento, que vai completar 2 anos, que provavelmente tenha herdado isto de minha mãe, que possui sintomas latentes. Como minha família, porém, é tipicamente moralista e orgulhosa, não aceita estes diagnósticos, nem em mim, muito menos nela. E vejo agora, a probabilidade de meu sobrinho já estar desenvolvendo tal quadro. Ele tem 23 anos, e pela dificuldade acima descrita, estou só observando a evolução dos acontecimentos (excesso de álcool, e outros comportamentos).
Bom, de tudo o que li, que ficou muito bem explicado de forma leiga, a parte mais sofrida do meu tratamento tem sido a reinserção social e produtiva. Ninguém entende ou aceita isto, e desenvolvi uma fobia (talvez natural), pelo receio de não deixar transparecer este quadro, ou ser vítima de um golpe inesperado pela sua descoberta. Porque, na pratica ele jé é manifesto. Da mesma, com as relações afetivas, Como só atrai gente de uma grosso calibre no quesito insanidade, fico temeroso também sobre os próximos passos. Comecei uma terapia vai completar um ano, que me ajudou muito, mas ainda sinto lacunas importantes. Pela falta de um trabalho fixo, a terapia é gratuita, e talvez precisasse mais de uma vez por semana. E como só conto com ajuda financeira da minha mãe (pouca), tenho que ir no passo que consigo, mais devagar do que conseguiria. Você teria algum toque à respeito desta questão social, para poder aliviar o isolamento e a pressão?? Um abraço. André

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