terça-feira, 15 de fevereiro de 2011 | By: Cinthya Bretas

Amor que discorda



Conta a tradição mítica grega que a Deusa Éris teria duas faces ou talvez uma irmã gêmea. O fato é que se manifestava em dois aspectos, num deles era filha de Zeus, soberano absoluto do Olímpo, arquétipo do pai (e do fanfarrão mulherengo) e de Hera sua esposa ciumenta, protetora do casamento e do status quo.
Nascida da união entre a libertinagem criativa e o seu oposto conservador e moralista, teria recebido de seu pai o encargo de suscitar entre os homens a competitividade, através dos recursos do ciúme e da inveja, para assim promover-lhes o crescimento.
Sua outra face tinha origem de deuses mais primordiais. Filha de Nyx, (a noite) e Chronos (o tempo).Suscitando a guerra e a carnificina, partilhava com seu irmão Ares o prazer em trazer o conflito ao seio da humanidade. Era a mãe da dor, da fome, da carestia. Incitava litígio, conflito e anarquia.
Sua façanha mais conhecida ocorreu no casamento de Thetis e Peleu.Era costume na época lançar-se sobre os convidados um pomo de ouro ,como hoje se faz com o buque de flores. Éris, injuriada por não ter sido convidada — e com toda razão, diga-se de passagem, afinal quem deseja discórdia em seu casamento?—lança um pomo no qual estava inscrito: “À mais bela” , promovendo assim a competição entre Athena, Hera e Afrodite.
As deusas vaidosas convocaram o então pobre e lindo Páris para dirimir a contenda o que lhe gerou grande sofrimento pela vingança das não escolhidas. Ao eleger Afrodite e o amor, Páris muda o rumo de sua vida e de toda uma nação.Quiçá de toda a humanidade.

Escolhe o amor quando as outras duas haviam lhe oferecido: Athena o poder sobre a terra e Hera a sabedoria e a vitória em qualquer combate.
Páris, então um pobre pastor, num mundo de lutas e conquistas, naquele momento, somente poderia escolher o amor da mulher mais bonita da face da terra, Helena que, anos depois, quando já transformado em guerreiro poderoso e descoberto nobre, será raptada por ele  gerando assim a Guerra de Tróia .
Amor e conflito se entrelaçam. Entrelaçam-se porque Páris desconhecia. Desconhecia quem era, desconhecia seu poder, desconhecia o encargo e a responsabilidade que lhe cabia. Escolhe o amor por ser um pobre pastorzinho que desejava apenas a beleza e o amor juntos, sem conflito, sem dor.
Porém Èris, matreira, cumpriu sua função, girou a roda do mundo que fez com que descobrisse anos depois, ao vencer jogos atléticos disputados na cidade de Tróia,que era filho do rei  Príamo e o faz reaver seus atributos reais,  transformando-se num príncipe conhecido pelo valor extensivo que dava as suas conquistas sexuais, acreditando que os únicos prazeres a que se deveria dar valor eram os da carne.
Abandona Enone seu primeiro amor cheio de equilíbrio e paz do tempo da inocência pastoreira pelo desejo de possuir a mulher mais bonita e se perde neste desejo gerador de conflito.
            A história de Páris é o protótipo de uma história de escolhas que nos ajuda a refletir e fazer a pergunta: Amor e conflito coexistem?
. O amor sempre necessita vir recheado de conflitos? E mais, será possível ao amor sobreviver ao conflito?Quando nos apaixonamos quase sempre é na condição “pastoreira” de Páris. Inocentes embarcamos numa viajem pelo mundo delirante das emoções e nem nos damos conta de que estamos nos vinculando a pessoas com as quais temos algumas diferenças.Diferença é sempre bom .Escolher apenas o igual seria muito óbvio porém, como lidamos com o dessemelhante em nossas vidas? Estamos preparados pela nossa educação e nossa cultura para abraçarmos este poço de desigualdades que pode ser nosso alvo de amor?E se não toleramos certos aspectos desta diferença como foi que nos unimos a esta pessoa?

 Muitos casais me procuram na esperança de que através da terapia ocorra uma mágica, porque é o que eles desejam. Que o processo terapêutico funcione como um deus ex machina desatando de uma hora para outra todos os nós, resolvendo os impasses e principalmente fazendo com que o companheiro modifique sua maneira de pensar e agir. Ai eu me pergunto, aliás, eu pergunto ao casal: Onde está o amor? O que foi que fez com que você escolhesse esta pessoa como companheira?
Alguns se lembrarão, mas a maioria deixará que o conflito que assombra a relação se torne maior que tudo. Na maioria das vezes existe uma questão principal que opera a discórdia e quase sempre ela girará em torno do tema Controle: Quem ira controlar quem? Quem manda no pedaço? É a competitividade dando seu ar em meio à relação. Luta de egos que desejam se afirmar dentro de um espaço que deveria ser exclusivo para trocas e crescimento.
Em segundo lugar vem a questão dos ciúmes onde, aliás, o desejo de controle continua se disseminando, é o desejo de domínio absoluto sobre o desejo do outro inclusive sobre o passado.
E, a partir destes dois vértices todas as outras questões se desdobrarão em direção sempre de uma única falta, a falta de tolerância.
            E não é justamente isso que falta à humanidade desde que ela habita este planeta e passa a produzir cultura? Éris anda por aqui semeando a discórdia entre os homens à muito. E até no seio das relações intimas ela se apresenta e joga seu fel maligno.Entre irmãos, entre pais e filhos, que dirá entre dois seres oriundos de lares e vivencias diferentes.
            O amor chega a nossas vidas trazendo um desafio. O desafio da mudança. Acreditamos que nosso sentimento terá força suficiente para promover automaticamente, como uma varinha de condão, as transformações e adaptações necessárias a convivência feliz. Quando não acontece, das duas uma, ou rompemos a relação ou buscamos auxilio terapêutico, porém, nem sempre com o desejo de refletir a respeito das verdadeiras origens do conflito que na maior parte das vezes decorre da história afetiva individual de cada um desde quando chegou a este mundo.
É muito mais fácil colocar a responsabilidade na mão do outro. Seja do outro parceiro que precisa mudar ou do outro terapeuta que vai fazer tudo funcionar.
Na verdade trata-se de um trabalho conjunto em que a disponibilidade e a capacidade individual de se abrir às novas formas de funcionar afetivamente serão exigidas. E para isto é necessário que cada um esteja aberto à se repensar, reconhecer suas maneiras aprendidas de resposta emocional, vasculhar suas limitações e crenças culturais e familiares e estar disposto a abrir mão de posicionamentos territorialistas .
Casamento, namoro, noivado, “ficância” seja lá o grau ou o nome que você dá, trata-se de um relacionamento afetivo.  Relacionamento afetivo. De afeto. Carinho, aceitação, troca. È disso que ele se compõe Não é uma disputa de poder
É uma busca de crescimento. E quem fica sempre imóvel, irredutível em seus posicionamentos tem uma chance muito vaga de expandir seus horizontes em qualquer campo, muito menos no amoroso. Porque amor é permuta de aprendizados e é tolerância. Num mundo de tantos conflitos quem deseja contribuir assim de maneira inadvertida aos ditames da deusa Éris.? Você quer?

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