sábado, 4 de dezembro de 2010 | By: Cinthya Bretas

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A INTIMIDADE



Roberto C. Leal
Inicialmente gostaria de comentar que o tema intimidade é bastante complexo, pois é normalmente associado a discussão sobre sexualidade, gênero e/ou as relações/transformações entre as esferas pública e privada. Por isso, adotei como critério de reflexão, a busca dos nexos que compreendem sua etimologia, como forma de tornar mais amplo seu significado e explorar sua função em nossas vidas. Nesse sentido, a partir da escolha deste caminho, busquei contrapor os aspectos que envolvem este tema com as reconhecidas características de nossa sociedade contemporânea, especialmente no que concerne aos grandes centros urbanos.
Sob o ponto de vista psicológico, pode se dizer, que a intimidade está associada especialmente ao constante jogo que ocorre em todos nós entre os mundos interno e externo. Nesta perspectiva, também temos de levar em consideração o individual e o coletivo. Nos termos de Jung, equivaleria dizer que o processo de individuação considera também a relação com a psique coletiva e/ou arquétipos. Nossa busca individual não é isolada do mundo, dele participamos e somos por isso também coletivos.
Freud também corrobora com essa idéia, como pode ser observado em seu texto intitulado “Psicologia de grupo e a análise do Ego”, onde elimina a dicotomia entre a psicologia individual e social, entre indivíduo e sociedade. Ao seu ver, toda a psicologia é social na medida em que investiga a natureza dos vínculos, pois são os vínculos que constituem o mundo mental dos indivíduos. Nesse sentido, cada indivíduo é um ramo, por assim dizer, do social, pois está em relação com os outros. Vale dizer que no âmbito interno de cada indivíduo encontram-se inscritos objetos e modelos identificadores do coletivo. As relações, portanto, são fenômenos sociais que constituem o indivíduo.
Em sua etimologia, a palavra intimidade caracteriza-se por ser uma qualidade do íntimo, que do latim “intimu” refere-se ao que está dentro, que atua no interior, que é estreitamente ligado por afeição ou confiança, próximo, relacionando-se portanto ao sentir. Nessa direção, a intimidade pode ser considerada a partir do contato interno (consigo mesmo) e externo (o outro e as coisas).
Anthony Giddens, sociólogo inglês, ao discutir a transformação da intimidade, afirma que “a intimidade é acima de tudo uma questão de comunicação emocional, com os outros e consigo mesmo, em um contexto de igualdade interpessoal”. Isso vale dizer que a intimidade implica também em relação, vínculo e mais que isso, em alteridade - que portanto reconhece e considera o outro.
Se ampliarmos um pouco o significado e o sentido de intimidade, podemos presumir que as qualidades que envolvem essa palavra referem-se ao contato, seja pelo silêncio consigo mesmo ou pela conversa em um tom próximo, que poderia ser murmúrio, calmaria ou tranqüilidade, onde o tempo carrega uma conotação própria associada especialmente ao ritmo singular de cada indivíduo, onde segredos podem ser confiados ou desvelados. Este ritmo a que me refiro é bastante peculiar, pois refere-se a possibilidade de fluidez - quando se está a vontade consigo mesmo e/ou com o outro.
Mas ao considerarmos as características que definem o sentido do que se pode compreender por intimidade, nos deparamos com as dificuldades oriundas da sociedade contemporânea. Cabe assinalar que estas dificuldades têm um caráter histórico, advindas da racionalidade do homem moderno, cindido pela predominância da razão como forma de vislumbrar o mundo.
Se o século XX foi notabilizado por um expressivo avanço tecnológico, verificou-se também um processo crescente de monetização dos valores, tornando as relações na sociedade cada vez mais dependentes de um mundo mercadológico. Com a globalização, mesmo o Oriente passou a sofrer forte influência da dinâmica econômica.
Marshall Berman, historiador americano, afirma que a modernidade carrega consigo uma profunda ambigüidade e contradição permanente: destruir, construir, para depois destruir e assim sucessivamente. Ao mesmo tempo, essa dinâmica é pautada pela velocidade, pela extensiva variedade de objetos mercadológicos, por um tom mais quantitativo do que qualitativo. A ação presente descarta o conteúdo do passado, a memória, a história e a cultura. Vivemos, nesse sentido, em um processo constante de rupturas.
A velocidade é própria do homem moderno pois o impregna na sua dinâmica de tal forma que sua capacidade reflexiva parece se restringir em olhar somente na direção do horizonte, sem olhar para dentro de si e de sua história cultural, cuja memória seria o instrumento necessário para articular e desenvolver uma reflexão entre passado e presente.
A modernidade parece impor ao homem uma cadência de fora para dentro, afetando seu próprio ritmo, seu tempo interno.
Conforme Christopher Lasch, também historiador americano, o homem oriundo da modernidade caracteriza-se por um processo crescente de isolamento e empobrecimento espiritual, entendido como um ser desarticulado, fragmentado, superficial, a partir da decadência de uma cultura individualista levada ao extremo, uma forma peculiar de narcisismo.
Este narcisista é marcado ou perseguido pela ansiedade, não pela culpa. É competitivo em seu desejo de aprovação e reconhecimento na sociedade. Estaria traduzido por um eu defensivo, voltado para a sobrevivência, incerto do futuro, inseguro.
Nesse sentido, Lasch afirma que o “homem psicológico” do século XX é perseguido pela depressão, vagos descontentamentos e por uma sensação de vazio interior, mas que não busca nem o auto crescimento individual, nem a transcendência espiritual. Este homem busca a paz de espírito.
Jung aponta um outro aspecto que poderia propiciar ao homem moderno um contato mais profundo consigo mesmo, íntimo, que se relaciona à religião. Segundo Jung, “somente as religiões ultrapassam os sistemas racionalistas, referindo-se tanto ao homem exterior quanto ao interior”. Entretanto, Jung constata que a educação anímica geral do homem europeu ou ocidental mostrou-se falha. Nesse sentido, destaca que a atitude ocidental a partir de sua religião, dá ênfase ao objeto, em sua mentalidade superficial e formalística, tendendo a relegar o “modelo” de Cristo a seu aspecto objetal, transformando-o em um objeto externo de culto, roubando-lhe a misteriosa relação com o homem interior.
Não é meu propósito nessa discussão estender-me nas conseqüências que a racionalidade imprimiu (deixou sua marca) historicamente em nossa sociedade contemporânea. Mas gostaria de salientar que nas duas últimas décadas do século XX, ao que foi denominado como processo de globalização, pode ser entendido como um acirramento ou aceleração (velocidade) de um processo vigente, desde o momento em que a civilização caminhou segundo o princípio da racionalidade. O homem naquele momento cindiu-se. Separaram-se: corpo e mente, vida interior e exterior, saber e fazer, subjetivo e objetivo.
Parece-me que estas constatações tornam a discussão do tema intimidade mais complexo. Pode-se dizer, em certa medida, que os efeitos provocados historicamente pela racionalidade na sociedade contemporânea seguem direção oposta ao que se entende por intimidade. Entretanto, é necessário não esquecer que muitos pensadores, escritores e artistas buscaram desenvolver não somente a reflexão sobre estes efeitos, mas apontar caminhos para que não perdêssemos, por assim dizer, nossa intimidade. Jung certamente pode ser considerado como um pensador extremamente relevante a esse respeito.
Até aqui vimos que a idéia de intimidade pode ser relacionada com: proximidade, ligação, relação, vínculo, confiança, interior, dentro, ritmo, silêncio, conversa.
Parece-me que podemos estabelecer intimidade conosco através do silêncio, da introspecção, como possibilidade para poder “escutar” nossa voz interior ou pela visualização de imagens interiores (sonhos, fantasias). Creio que Jung exemplifica bem este tipo de intimidade consigo mesmo através do reconhecimento das personalidades nº1 e nº2, comentadas em suas memórias.
Quando é atribuída à intimidade a idéia de vínculo, relação, confiança, conclui-se que o contato íntimo se dá também pelo contato com o outro. O outro é presença de alguém que podemos compartilhar, confiar, entrar em sintonia (ritmo), fazer-se compreender e buscar ser compreendido.
A presença e o reconhecimento do outro confirma, por assim dizer, nossa existência e nossa condição no tempo e no espaço - enquanto noção de permanência, do viver. Vale lembrar que ser e estar carregam, em certa medida, um mesmo sentido, que podemos atribuir a uma condição do existir: ser é estar também em relação. Por isso tão importante é a questão da alteridade.
Por outro lado, a partir do reconhecimento de minha existência pelo outro, posso compreender melhor meu silêncio e o estar sozinho – minha existência interior.
A intimidade carrega também a idéia de estar estreitamente ligado, em contato, próximo. Esta ligação pode ser entendida pela via do sentimento. Jung assinala a importância para a compreensão do uso da palavra sentimento. Para ele o sentimento não é uma emoção - pois esta é involuntária. O sentir é uma função racional, isto é organizadora. “O sentimento significa a capacidade de pesar e avaliar a experiência – no sentido de dizer: eu sinto que isto é uma boa coisa para fazer – sem precisar analisar ou raciocinar o porquê da ação”.
Hillman a este respeito salienta que “reduzir o sentimento a uma mera alternativa gostar – desgostar é uma desvalorização intelectual...O sentimento registra a qualidade e o valor específico das coisas. E é função do sentimento, precisamente, fazer essa exploração e amplificação de nuanças e tons, que são o oposto da redução”. Nesse sentido, segundo Jung, o sentimento é um processo passível de desenvolvimento.
Desenvolver o sentimento parece ser umas das premissas da intimidade. Nesse sentido, não se trata de privilegiar o sentimento em detrimento das demais funções psicológicas apontadas por Jung (intuição, sensação e pensamento) limitando a discussão, mas de observar seu sentido em oposição ao pensamento. O desenvolvimento do sentimento pode ser um dos atalhos para a compreensão de conflitos que o pensamento não consegue resolver. Tornar-se sensível ao outro pode ser também um caminho para a alteridade e proximidade.
No consultório, quando nos deparamos com nossos pacientes, nos damos conta da importância da intimidade. Jung afirmou que “o trabalho analítico conduzirá mais cedo ou mais tarde ao confronto inevitável entre o eu e o tu, e o tu e o eu, muito além de qualquer pretexto humano; assim pois é necessário que tanto o paciente quanto o analista sintam o problema na própria pele; assim o verdadeiro analista não é aquele que fica ao lado, mas sim dentro do processo”. Exige portanto o comprometimento do analista por inteiro. Implica por isso em um laço íntimo com o paciente.
A intimidade relaciona-se como vimos ao que está dentro, que atua no interior. Podemos constatar portanto que o trabalho analítico só acontece através do vínculo, do comprometimento por inteiro, de uma escuta atenta ao ritmo do paciente a partir de uma ligação íntima, onde a confiança é sua própria condição e confirmação. Este campo e/ou espaço clínico é nos termos de Jung a possibilidade do encontro alquímico, entendido como processual, passível de transformação. Estamos na presença do outro e este se nos apresenta. Estamos ambos dentro do vaso alquímico.
Entretanto é necessário lembrar que um paciente ao entrar em nossos consultórios carrega consigo uma história, um ambiente, valores morais e éticos – este ser é psicossocial. Por isso a questão da intimidade, por sua complexidade nos dias atuais constitui talvez em um dos desafios mais significativos e recorrentes em nossos consultórios.
Não estamos do lado de fora do universo sócio-cultural. Fazemos parte dele, estamos contaminados por assim dizer, pelas estruturas sociais, relacionamentos e, especialmente, por valores reconhecidos no âmbito coletivo.
Na pós-modernidade ainda somos todos herdeiros da racionalidade. A desarticulação e fragmentação características do homem de hoje ao meu ver exigem uma atitude reflexiva constante, especialmente pela via do sentimento. Seria o sentimento nossa função inferior?
Nesse sentido, o Homem de nossos dias parece cada vez mais distante do sofrimento humano. Parece estar mais próximo da monotonia, tedioso, isolado, buscando a cura, o remédio que evite entrar em contato consigo mesmo e com o outro - sem enfrentar a dor de crescer.
Finalmente, criar intimidade é gerar um elo, contato, tensão, movimento. É relação consigo mesmo e com o outro. Uma ligação entre o interior e o exterior, entre o passado e o presente, é propiciar proximidade e cumplicidade, um atalho possível para compreender e conhecer.
Referências Bibliográficas
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Companhia das Letras, São Paulo, 1986.
FRANZ, Marie-Louise von e HILLMAN, James. A Tipologia de Jung: I - A Função Inferior ; II – A Função Sentimento. Editora Cultrix, São Paulo, 1990.
FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e a análise do ego. Obras Completas, Volume XVIII. Imago Editora, Rio de Janeiro, 1969.
GIDDENS, Anthony. A Transformação da Intimidade: Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas. Editora Unesp, São Paulo, 1992.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e Alquimia. Obras Completas, Volume XII. Editora Vozes, Petrópolis-RJ, 1994.
________________. Memórias, Sonhos, Reflexões. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1990.
________________. O Homem e seus Símbolos. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro.
LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo: a vida americana numa era de esperanças em declínio. Editora Imago, Rio de Janeiro, 1983.
________________. O mínimo eu: sobrevivência psíquica em tempos difíceis. Editora Brasiliense, São Paulo, 1986.

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