segunda-feira, 27 de junho de 2011 | By: Cinthya Bretas

Quando tudo que se tem não representa nada








“Quando tudo que se tem não representa nada
Tá na cara que o jovem tem seu automóvel
Quando tudo que se tem não representa tudo..
Ta na cara conteúdo consideração”
Congênito -Luis Melodia



Sábias palavras do poeta Luis Melodia. Apesar de ter sido composta a mais de vinte anos, a letra já trazia um recorte do que é a atual sociedade em que vivemos. Sociedade cujos valores se limitam aos adquiríveis. Esta onde unicamente o poder da matéria é passível de traduzir o homem. Mundo de “perecibilidades” onde nada é para sempre e os desejos se alternam e se acumulam sem jamais satisfazer. Modernidade líquida como propõe Zigmunt Baumam.[1]
Nela os valores e objetivos se baseiam em estereótipos, o eixo do ser se desloca para a exterioridade e as subjetividades se constroem unicamente na intenção narcísica de desviar os olhares alheios a fim de atingir o campo da visibilidade[2] .
Eis uma sociedade baseada no espetáculo[3] na qual esta visibilidade tão almejada será o objetivo único que embasará cada passo, cada planejamento de suas atividades, a cada endereçamento de desejo é necessário além de ter, expor, mostrar. Competindo arduamente pela evidência social, o que bastará, qual seria o limite satisfatório ?
Nada é bom o suficiente e tudo o que se tem, ainda que acumule poderes materiais, superioridades sociais e coletivas, não supre, não consola. Assim surge um novo indivíduo para o qual todas as referências pessoais vêm daquilo que acumula e consome, sem sequer se perguntar para que, se daquilo carece realmente. “Bens” que necessariamente não farão tanto bem e que apenas perpetuarão o grande buraco ausente de sentido onde estas almas se afundam. Do velho jargão: Estes são indivíduos onde ter vem no lugar de ser.     
Ai vem o desencanto, ou o desbunde como se dizia na década de 70. De um lado a necessidade de acumular cada vez mais gadgets substitutivos do desejo, de outro a impossibilidade de lidar com tantas próteses, tantos adereços que são colocados no lugar do vazio existencial, no lugar da tristeza, da angústia, do medo.
 Obviamente, com a alma equivocada, o corpo começa a penar, o barco começa adernar, carregado de tantos conteúdos supérfluos. Na pior das hipóteses o individuo consumista acumula estatisticamente um novo troféu do qual poderá mais cedo ou mais tarde se vangloriar, a depressão. O suicídio muitas vezes é o final de uma vida dedicada a nada. Numa saída menos extrema teremos a fadiga crônica, os distúrbios do sono, obesidade, anorexia, bulimia, são sinalizações através do corpo daquilo que é jogado pra escanteio abrindo espaço para o carro, o ipod, o laptop, todos de ultima geração cada um mais moderno, mais eficiente, mais potente que o outro, já que a potencia do ser não é acessada.
A despeito do poder que simbolizem, serão rapidamente substituídos por outros de design mais recente porque, para cumprir o objetivo de suprir a falhas de um ego faltoso, nunca satisfarão apenas se estenderão numa interminável e emblemática cadeia de sucessivos mascaramentos da falência privada.  E jamais satisfarão porque, a necessidade a ser saciada, não aceita ser suprida desta maneira. Não importa o quanto se gaste.
Se, é na profundidade que se encontra a falta é na superficialidade que se instala a necessidade de adquirir mais. E quando o fetiche dos gadgets não satisfaz passa-se para o próprio corpo e se estende para as relações. Exigências de um ideal de perfeição passam a ser imperativos já que como, aponta Baudrillard[4], a beleza também se torna forma de capital e assim o corpo se torna de todos, o mais belo objeto de consumo.

Intervenções cada vez mais audaciosas vão modificando gradativamente toda a conformação corporal ou, outrossim, em decorrência do poder acumulado, adquire-se mais poder através das conquistas sexuais também simbólicas de prestigio social.  Aqui também não parece existir um limite e sua amplitude é devastadora. Grandes horizontes de uma solidão irreparável. Porque se cria uma cúpula de defenses onde tudo que não proporcione prestígio e inflação de ego é sumariamente retirado. Campos de força se interpenetram deixando apenas  que se acesse de fora o bastião encantado do ideal de  opulência material.
E aquilo que se valoriza habita um país onde os laços afetivos não se firmam porque as atrações se apóiam unicamente na exterioridade e se desdobram no bater do leque, como nos salões do século XVIII, pelas vantagens que proporcionam, pelo status que denotam, pelo aparentável. Ou unicamente pelo esporte, trata-se do sexo para consumo, caracterizado pelo uso e pelo descarte. Desta forma há uma troca da qualidade pela quantidade, a longa duração é trocada pela rapidez, a realidade pela virtualidade Tudo aquilo que incite ou ameace ao aprofundamento será descartado pela ameaça que trás[5]. A intimidade é intromissão exasperante que irá desvelar e fazer encarar a grande angústia de existir, a grande dificuldade de criar laços.
Pela teia grudenta da sociedade de consumo se move o pobre sujeito homem às direções da superação sem sentido. Consome-se a si mesmo e se perde cada vez mais de sua humanidade e longe de si adoece em sua alma. Enquanto isso ainda os lírios do campo nem fiam, nem tecem...no entanto...


[1] BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
[2] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987.
[3] DEBORD, G.  La société du spectacle. 1992[1967]. 3ª ed. Paris, Gallimard.1992
[4] BAUDRILLARD, Jean. A Sociedade de Consumo , Lisboa: Edições 70, 1991
[5] idem

0 comentários:

Postar um comentário

Diga o que pensa